O preço do cacau bateu recorde e deixou produtores da Bahia eufóricos — mas aí veio o 'banho de água fria'
26/08/2025
(Foto: Reprodução) Josenilda Silva tinha esperança de modernizar sua lavoura na Bahia, mas planos já mudaram com queda do cacau
Acervo pessoal
"Os grandões brigam lá fora e vem bater na gente aqui." A reclamação de um pequeno agricultor de cacau do sul da Bahia foi ouvida no armazém de uma cooperativa de produtores em Ituberá, na Costa do Dendê, no início de agosto.
O comentário era sobre o valor que estava sendo pago pela arroba do cacau (15 kg) que ele havia colhido — uma queixa comum entre os produtores nos últimos meses.
No final do ano passado, o preço do cacau bateu recorde global, diante da escassez do produto devido a uma safra ruim na maior região produtora, na África.
Os valores causaram uma euforia inédita entre os agricultores do sul da Bahia, região historicamente produtora do cacau no Brasil que vem se reerguendo nas últimas décadas após a devastadora praga da vassoura-de-bruxa nos anos 1980 e 1990.
"Quando todo mundo se animou, veio um banho de água fria", resume José Luís Fagundes, produtor em Igrapiúna (BA).
Do fim de 2024 para cá, em uma dinâmica comum de mercado, o preço recuou na cotação do cacau na bolsa de Nova York, usada como base para estabelecer o preço no Brasil. Entre outros motivos, pela expectativa de alguma recuperação da safra em Gana e na Costa do Marfim, os dois maiores produtores.
Mas, além desse movimento, o baque para os pequenos produtores brasileiros acabou sendo maior.
Em meio à baixa nos valores pagos pelas poucas multinacionais que controlam o mercado no Brasil e às incertezas da indústria diante das tarifas de Donald Trump sobre os produtos brasileiros, a ponta da cadeia já sente que o chocolate mais caro no mercado não vai significar necessariamente mais dinheiro no bolso.
Da lavoura de cacau até o chocolate fino
Bahia ainda tenta se recuperar após pragas dizimarem plantações e afetarem a renda de toda a região
Rafael Martins/AFP via Getty Image
Segundo a Associação Nacional dos Produtores de Cacau (ANPC), que representa cerca de 5 mil produtores, considerando os valores cotados no mercado internacional na bolsa atual, o que tem sido pago no Brasil chegou a ser R$ 85 a menos por arroba em agosto.
"As indústrias fazem o que querem na precificação interna", critica Vanuza Barroso, presidente da ANPC.
A percepção geral entre os produtores com quem a BBC News Brasil conversou nas últimas semanas é que as fábricas conseguem puxar juntas o valor do cacau para baixo no Brasil diante de incertezas no mercado.
A associação que representa a indústria cacaueira do Brasil, inclusive as três empresas que dominam esse mercado — a americana Cargill, a suíça Barry Callebaut e a singapurense Olam/Ofi — diz que não comenta os valores praticados por suas associadas especificamente, mas ressalta que os valores refletem as relações do mercado.
"A gente muito provavelmente está tendo nas relações de compra um cenário de demanda e oferta mais equilibrado", diz Anna Paula Losi, presidente-executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC).
Segundo ela, a indústria já vem experimentando um recuo da demanda pelos derivados de cacau, já que, com preços tão elevados nos últimos anos, há agora menos compradores de chocolate — e menos cacau na fórmula dos produtos.
A BBC News Brasil questionou as três multinacionais que dominam o mercado sobre os preços praticados no mercado. A Barry Callebaut disse não comentar suas relações comerciais. A Cargill e a Ofi não responderam.
Agora, a previsão do setor é que a indústria cacaueira brasileira perca R$ 180 milhões até o fim de 2025 com as tarifas de 50% aplicada pelos EUA.
O cacau não entrou na lista de exceções do governo Trump, apesar de o secretário de Comércio dos EUA, Howard Lutnick, ter falado que o produto, por não ter produção em território americano, pudesse ser isento.
Ao processar o cacau, a indústria cacaueira brasileira exportou cerca de US$ 72,6 milhões (R$ 397 milhões) aos EUA em 2024, o que representa 16% de seu mercado. No primeiro semestre de 2025, antes das tarifas, o valor já estava em US$ 64 milhões (R$ 350 milhões), agora 20% do total de exportações.
O principal produto exportado aos americanos é a manteiga de cacau, que tem o maior valor agregado que o pó, mais consumido na indústria chocolateira nacional.
Na prática, a queda do preço do cacau no Brasil mudou os planos de quem estava apostando em finalmente modernizar as lavouras na Bahia.
Sem o comércio com os EUA e com pouca margem para redirecionar a manteiga a outros mercados, as fábricas trabalham com mais redução de moagem nos próximos meses.
Produtores interrompem plano
Em Jitaúna, Josenilda esperava usar os valores mais altos recebidos por seu cacau para ampliar produtividade
Acervo pessoal
Com o que chegou a receber no ano passado, a pequena produtora Josenilda Silva, de Jitaúna (BA), queria investir em equipamentos, fertilizantes e até energia solar para impulsionar sua produção. Agora, adiou tudo.
"Os pequenos agricultores são os que mais trabalham, mas o retorno nem sempre é leal com a gente", reclama dona Jô, como é conhecida.
Ela conta que, desde que voltou à Bahia para plantar cacau em 2017, pela primeira vez estava conseguindo ter um retorno financeiro suficiente para investir e ter uma renda.
Isso explica por que a decepção nos últimos meses tem sido grande na região.
O analista e produtor Adilson Reis, fundador do site especializado Mercado do Cacau, que monitora preços do produto, avalia que não é possível dizer hoje que o produtor está ganhando mal, levando em consideração a média de valores nas últimas décadas.
Mas, numa região que nunca se recuperou plenamente da devastação dos anos 1980 e 1990 e em que a agricultura, de maneira geral familiar, ainda é realizada sem muitos recursos, "a maior dor é ver o ciclo de reconstrução se interromper", avalia Reis.
A vassoura-de-bruxa foi maior praga da história da cacauicultura brasileira, derrubando até hoje a renda e acesso à educação em municípios afetados.
Brasil chegou a ser segundo maior produtor de cacau - até os anos 1980. Na foto, uma plantação na Bahia em 1933
Keystone-France\Gamma-Rapho via Getty Images
Em Igrapiúna, José Luis Fagundes esperava plantar uma área nova, comprou um trator, mas a incerteza sobre o futuro também o fez frear os investimentos.
"A gente fica muito inseguro de tomar decisão no ânimo de um preço alto", diz Fagundes.
"Vou me endividar agora para fazer uma renovação de uma área? Será que os preços não vão cair novamente? Não há credibilidade. Não temos relação de confiança com a cadeia produtiva do cacau."
Os produtores também sentem que partem sempre em desvantagem na negociação com as multinacionais que compram quase todo seu cacau. Cerca de 70% da produção brasileira é feita por pequenos e médios produtores, segundo a AIPC.
"É uma cadeia com poucos compradores e muitos vendedores. E as indústrias são representantes do exterior. Numa queda de braço, vai para elas", explica a pesquisadora do cacau Mônica Pires, professora de economia da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus.
Segundo relatos ouvidos pela reportagem no início de agosto, a indústria de repente passou a estabelecer o valor de compra com base na bolsa futura de março de 2026 — na prática, promovendo um "deságio".
O termo se refere a quando o produtor recebe menos do que o preço que o produto valeria em teoria no mercado global.
Em agosto, a bolsa de março de 2026 chegou a cotar o cacau em um valor US$ 1 mil dólares mais baixo por tonelada do que as cotações mais atuais, segundo a ANPC.
"As indústrias trabalham muito alinhadas, com pouca margem de diferença entre si", diz Luis Fagundes.
Anna Paula Losi, da AIPC, explica que a prática da bolsa futura ocorre por análises de expectativas de mercado: "É uma relação onde todo mundo pondera risco".
Na lógica da indústria, ela explica que, "se hoje o cacau na bolsa está tanto, mas aqui no mercado brasileiro a demanda por esse cacau está baixa, a indústria pode esperar mais seis meses para comprar".
"Mas, se você quer me vender, ok. Então, meu custo de estocar esse cacau, de ter segurança, de botar seguro, eu vou pagar menos X no seu cacau para compensar esse risco que estou assumindo", completa Losi.
Na prática, porém, os produtores avaliam que poucos conseguem fazer uma negociação ou esperar para vender quando a indústria subir o valor.
"Como nossa base econômica é frágil, o produtor não consegue ficar segurando para vender e assim fazer pressão na indústria. Se bate a fome, tem que vender. O ideal seria não entregar até eles mudarem, mas não existe isso", diz Fagundes.
Como resultado, avalia o produtor, a produção cacaueira na Bahia segue sendo na maioria de subsistência, ainda com pouca capacidade de organização entre os produtores e pouco lucro.
Uma realidade não vista apenas na Bahia, Estado que, junto ao Pará, responde por mais de 90% da produção nacional. Mesmo com potencial econômico do cacau, as regiões produtores do mundo permanecem empobrecidas, com produtores dependentes da estrutura internacional de compra do produto.
Luiz Fagundes defende que cacauicultores precisariam de patamares prolongados de preços bons para reestruturar o setor na Bahia
Acervo Pessoal/BBC
Indústria cacaueira diz viver momento delicado
Em geral, as grandes moageiras compram o cacau dos produtores brasileiros diretamente ou por meio de associações, cooperativas ou dos chamados atravessadores.
Nas fábricas, industrializam as amêndoas e as transformam em produtos para consumo interno e exportação em forma de pó, licor ou manteiga. Esses serão vendidos para a indústria alimentícia, que faz chocolates e biscoitos, por exemplo.
Segundo a indústria, o cacau produzido pelo Brasil hoje não é suficiente nem para suprir a demanda interna, especialmente o pó, nem para manter as fábricas em pleno funcionamento.
Por possuírem um parque fabril de grande proporção na região de Ilhéus, herança dos tempos áureos da região, as indústrias então importam cacau da África a uma taxa zero, um sistema conhecido como drawback.
Nesse sistema, toda amêndoa importada obrigatoriamente tem que ser exportada como um produto de valor agregado.
Segundo a AIPC, ainda assim, a ociosidade das fábricas brasileiras hoje é de 12% e pode chegar a 18% esse ano com as tarifas dos EUA.
Cultura do cacau na Bahia é movida pela produção familiar
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Para os produtores, esse cenário de falta de cacau para moer que faz a indústria importar amêndoas da África mostra que o cacau brasileiro deveria ser mais valorizado. A ANPC vem fazendo campanha para que se importe menos cacau, algo justificado também pelo risco de se trazer pragas africanas ao Brasil.
A AIPC justifica que a redução da moagem se dá não só pela falta de cacau, mas de demanda — algo que deve piorar com as tarifas americanas.
"Quando eu prenso a amêndoa, a gente extrai o pó [direcionado ao mercado nacional] e a manteiga ao mesmo tempo. Se eu não consigo exportar a manteiga, vou ter que moer menos, porque não tenho como extrair só pó. A gente pode ter que começar a importar mais pó para o Brasil", prevê Anna Paula Losi.
Segundo a AIPC, a manteiga que iria para os EUA dificilmente terá outro destino, já que outros mercados como Chile e Argentina já têm a demanda atendida. Além disso, os EUA podem buscar a manteiga em outros países com facilidade.
A "crise de demanda", explica Adilson Reis, do Mercado do Cacau, ocorre porque, com o cacau caro, a indústria chocolateira passou a comprar menos e a adotar estratégias que, por sua vez, pioraram a qualidade do chocolate.
"Ha um problema nesse ciclo rápido de crescimento de preço, porque virou uma matéria-prima muito cara", diz Reis.
No Brasil, segundo a AIPC, essa queda ainda foi maior, porque o consumidor é pouco resistente à subida de preços.
Segundo analistas, os valores cotados na bolsa do cacau nos EUA também passaram a ter uma volatilidade "nunca vista antes" diante da entrada de fundos de investimento nos últimos anos.
Isso teria causado um desequilíbrio entre o que é o cotado internacionalmente e o que seria vantajoso para indústria no Brasil.
"O valor era insustentável para toda cadeia. Era positivo para o produtor, mas chegaria ao ponto de inviabilizar o consumo final", diz Losi.
Segundo ela, esse descolamento brasileiro da bolsa hoje acontece porque o que acontece no Brasil não influencia a bolsa, já que o país responde por apenas 4% do mercado global. "O que influencia a bolsa é o que acontece na África", diz.
Chocolate tem perdido qualidade (e cacau) no Brasil
Paulo Fridman/Bloomberg via Getty Images
O preço global subiu tanto que, em Gana e Costa do Marfim, hoje há tráfico de cacau, cenário semelhante à da "cocaína na Colômbia", segundo mostrou reportagem do Financial Times.
A AIPC diz ainda que incentiva produtores a vender diretamente para a indústria (sem ter que passar por atravessadores) e adotar práticas de sustentabilidade para que seu cacau valha mais.
Para o produtor José Luiz Fagundes, diante de tantas crises já vividas no setor, para os cacauicultores saírem de "inércia" e impulsionarem sua produção, os produtores precisariam de pelo menos três anos de um patamar melhor de preços.
Essa esperança, porém, já vem arrefecendo.
"Porque aí tivemos um ano bom e agora vem o freio. Será que indústria que já faturou tanto não consegue manter um patamar de preços altos para ajudar a estruturar a cadeia?"